Os políticos, os gestores técnicos e o difícil equilíbrio da democracia
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Antes mesmo do começo da Nova República, em março de 1985, uma quantidade expressiva de quadros técnicos foi chamada para compor o governo civil de Tancredo Neves, o primeiro pós-ditadura militar. O presidente, porém, morreu e o vice que assumiu, José Sarney, acabou por manter a equipe.
Ele fez isso porque havia o clamor de que a entrada de profissionais competentes em cargos estratégicos seria suficiente para transformar um país que carregava 21 anos de opressão e repressão e que se transformara em símbolo de ineficiência, incompetência e corrupção em todos os escalões.
A partir desse detalhe relevante e quase esquecido, Pedro Abramovay e Gabriela Lotta propõem como discussão em “A democracia equilibrista – Políticos e burocratas no Brasil” (Companhia das Letras) uma questão ainda urgente: as soluções para os problemas do país nunca vão sair apenas de estatísticas e gráficos de técnicos muito qualificados.
Os dois partem da vida pessoal e das ideias do cientista político Florestan Fernandes, no início da redemocratização, quando alertou: haveria uma Nova República se as forças sociais democráticas se lançassem ao combate e não deixassem esse papel apenas nas mãos do governo para solução dos problemas vitais. “Elas farão a revolução democrática — não o governo”, diz Fernandes.
Um de seus últimos artigos, publicado seis anos depois da promulgação da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, Fernandes chamava a atenção para a permanente possibilidade de que os processos democráticos fossem sequestrados pelas burocracias.
“A associação de burocratas e tecnocratas com os políticos favorece a despolitização das instituições partidárias, da direita à esquerda. Ela impulsiona ambições pessoais de carreira e projetos particularistas, divorciados das necessidades prioritárias da coletividade. Fortalece, pois, o conformismo, o fascismo potencial e a plutocracia”.
A associação de burocratas e tecnocratas com os políticos favorece a despolitização das instituições partidárias
Nesse contexto, os dois cientistas políticos defendem que a tensão que existe entre uma burocracia forte e independente e as disputas naturais da democracia – com ampla participação de estudantes, operários, indígenas e tantas outras forças sociais que são motores da democracia – está na chave da construção de um regime saudável e eficiente.
Para fundamentar o estudo, eles debatem temas como patrimonialismo, meritocracia e politização do judiciário, além de grandes discussões recentes, como o Marco Civil da Internet, a política de drogas e o Estatuto dos Povos Indígenas.
Um exemplo sobre o descompasso entre tecnocracia e política pôde ser visto nas ações de combate às drogas. “A alienação, fruto da ideologia, permite que a avaliação das políticas de drogas seja feita com base em indicadores de processo e não em indicadores vinculados aos objetivos gerais da política, que nesse caso seriam melhorar a saúde e a segurança das pessoas”, escrevem os autores.
“Mas a avaliação da política se escora no número de presos, na quantidade de droga apreendida e, em alguns países, até no número de mortos. Ou seja, se as pessoas estão consumindo mais drogas e morrendo mais por causa das drogas, mas a polícia está fazendo mais apreensões e mais prisões, os gestores da política são capazes de apresentar seu fracasso como se fosse sucesso.”
A aceitação desse descabimento só pode se explicar pela ideologia — e pela força com que ela pode produzir alienação. E aqui, mais uma vez, cai por terra a crença de que a abordagem técnica está apta a enfrentar todos os problemas, dizem os autores.
Abramovay é advogado, doutor em ciência política pelo IESP-UERJ e ocupou diversos cargos nos dois governos Lula (2003-2011), com destaque para o de secretário nacional de Justiça. Dessa experiência pessoal, ele relata episódios que ajudam a compreender seus argumentos.
Lotta é professora de administração pública da FGV-SP e doutora em ciência política e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole, além de ter sido professora visitante da Universidade Oxford, em 2021. Juntos, fazem uma leitura que merece reflexão, pelo grave momento de instabilidade que passa o país.
Desde meados dos anos 2000, escrevem eles, o lema “O Brasil precisa de gestores, de técnicos, e não de políticos” vem ganhando força e se tornou uma das questões centrais nas eleições da última década, quando a política passou a ser vista como expressão não da democracia, mas da corrupção.
Desde os anos 2000, o lema ‘O Brasil precisa de gestores, de técnicos, e não de políticos’ vem ganhando força e se tornou uma das questões centrais nas eleições da última década
“Fortalecia-se a ideia de que soluções de políticas públicas pudessem ser propostas por gestores bem formados de qualquer ideologia: a diferença entre esquerda e direita seria irrelevante, se é que existiria”.
Para cada problema da sociedade, explicam, existiria uma política pública correta a ser definida e implementada por um técnico que poderia prescindir do diálogo com os diversos setores da sociedade. Claro, afirmam eles, não existe boa política sem boa gestão.
“Gestores públicos devem produzir tecnicamente os cenários mais adequados para os políticos, os quais, legitimados pelo voto, farão, eles sim, as escolhas. Mas em muitos momentos parte desses gestores tem atribuído a si mesmos a função de alterar o Estado e a política sem a devida legitimidade para tanto, assentando-se na autoridade do cargo ao qual ascenderam por ‘mérito’. Ao fazer isso, eles minam a política por dentro e aos poucos destroem a democracia”.
O período que se seguiu à Constituição de 1988, escrevem os autores, demonstra que padrões de relação entre Estado e sociedade – clientelismo, corporativismo e insulamento burocrático –, só podem ser confrontados com reformas estruturantes que os substituam pelo que cabe a um país democrático republicano: “universalismo de procedimentos e participação”.
Os exemplos analisados no livro, acrescentam, também evidenciam os riscos da ascensão de um discurso técnico e meritocrático que busca se legitimar em detrimento da política, e que, na realidade, esconde interesses individuais ou de grupos específicos.
Pedro Abramovay e Gabriela Lotta defendem que os problemas estruturantes do Estado brasileiro não serão resolvidos pelo discurso meritocrático nem por jovens bem-intencionados e bem formados que, em seus escritórios, dedicam-se a analisar tecnicamente as medidas para acabar com a corrupção e aperfeiçoar o Estado.
“Para que o Estado cumpra os objetivos previstos na Constituição — construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza; diminuir a desigualdade e promover o bem de todos sem discriminação —, é necessário apostar tanto na técnica como na política”.
Para que o Estado cumpra os objetivos previstos na Constituição, é necessário apostar tanto na técnica como na política
O livro é recomendado por dois ex-presidentes da República. “A política é fundamental para promover a superação dos desafios históricos e construir uma democracia que enfrente seu passado de violência, não oprima as minorias e garanta a participação da sociedade nas decisões sobre os rumos do país”, escreve Lula. Para ele, “A democracia equilibrista” traz uma reflexão indispensável para quem luta por um Brasil justo.
Fernando Henrique Cardoso destaca que a obra alia sólida pesquisa acadêmica e a experiência de quem passou pelo governo. Os autores, afirma ele, oferecem uma contribuição original e relevante “para entendermos como buscar o equilíbrio instável em nossa construção democrática”.
Serviço:
A democracia equilibrista – Políticos e burocratas no Brasil
Pedro Abramovay e Gabriela Lotta
176 páginas
Impresso: R$ 69,90
Ebook: R$ 39,90
Companhia das Letras
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