Jovens usam TikTok para mostrar pedido de demissão e último dia no trabalho
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Especialistas avaliam que mudança pode estar relacionada à atitude geracional e à situação do mercado de trabalho
Quando se pensa no dia de um pedido de demissão ou em se despedir de um trabalho, a última coisa que se espera é gravar parte dele para mostrar numa rede social. Mas é exatamente isso que alguns usuários do TikTok fazem em tags como #quitmyjob (#largueimeuemprego, em tradução livre), nos Estados Unidos, ou #demissaochallenge e #demissao, no Brasil. A moda foi iniciada pela americana Shana Blackwell em outubro de 2020: na ocasião, a jovem de 19 anos usou um telefone do Walmart em que trabalhava para se demitir. “Danem-se os gerentes, dane-se a empresa! Eu me demito, caramba!”, exaltou-se a Shana no vídeo em que deixava a rede de supermercado, afirmando que encerrava ali dois anos insuportáveis nos quais teria sofrido assédio moral. Desde então, a #quitmyjob chegou a 219 milhões de visualizações, enquanto a #demissao tem 77 milhões e a #demissaochallenge alcançou 993 mil — no caso das tags em português, há outros conteúdos além dos vídeos de demissão, como advogados explicando os direitos de quem foi mandado embora.
O tom dos vídeos varia: alguns seguem Blackwell e demonstram alegria por se livrarem de um ambiente tóxico, mas outros aparentam uma certa dose de saudade por considerarem que chegou a hora de deixar o emprego, apesar de não odiá-lo. A brasileira Priscylla Ferreira se encaixa neste último grupo. Ela registrou no TikTok a última batida de cartão e a saída da escola em que trabalhava, antes de tirar a máscara e sorrir para a câmera enquanto dizia que havia chegado a hora de buscar novos rumos. Nos comentários, os ex-colegas desejaram sorte para a agora ex-professora de um colégio particular de Sorocaba (SP).
“Fui motivada por alguns fatores: queria registrar o que considero ato de coragem para me lembrar depois; assisti a várias pessoas que postaram e serviram de inspiração para mim, foram tantas histórias bonitas e inspiradoras que resolvi compartilhar esse momento para motivar também. Já atuo na área do marketing há quatro anos, conciliava as duas profissões, porém chegou o momento de focar e me dedicar para uma área só. Meu ambiente de trabalho era saudável, a gestão era competente e humanizada. Os colegas eram incríveis também. Então, realmente foi um ato de coragem largar um trabalho desses depois de sete anos”, explicou Ferreira.
@priscyllacft Pedi demissão para seguir meus sonhos, me siga p/os próximos capítulos #marketingdigital #demissaochallenge #foryou #nomadedigital #empresaria ♬ I AM WOMAN – Emmy Meli
A disseminação relatada por Ferreira é algo considerado importante para entender o fenômeno, embora não seja o único fator. Segundo a psicóloga e doutora em administração Luciana Lima, o fato de os jovens estarem ao mesmo tempo entrando no mercado de trabalho — o que os leva a experimentar situações com as quais não estavam acostumados — e a presença nas redes sociais faz com que eles usem o espaço digital para debater os temas. “No TikTok, o jovem se identifica com outros que estão passando pela mesma situação que ele, como o de se livrar de um chefe tóxico. Ele entende o que seria um ‘chefe tóxico’, e que alguns decidem pedir demissão, mas outros, não. Se antes os jovens se reuniam num bar para falar mal do chefe, e no dia seguinte tocavam a vida como se nada tivesse acontecido, o uso do TikTok representa exatamente a mesma condição”, analisa Lima, que também é professora do Insper.
Para Renan Pieri, economista e professor da FGV, o vídeo pode ser uma forma de extravasar as emoções daquele momento. “A demissão é um processo às vezes traumático. Quando vem em um momento difícil, geralmente significa uma queda de renda ou uma incerteza maior em relação ao futuro, então pode gerar frustração. O jeito de lidar com o sentimento de rejeição e essa carga negativa seria tentar demonstrar aos empregadores e ao colegas que esse pedido de demissão não o afeta, não o define, não o derrota. É uma forma de extravasar”. Por outro lado, o vídeo pode ajudar a formar um conceito sobre a empresa para outras pessoas. “Uma vez que quando eu trabalho numa empresa e vi o relato de outros funcionários, é bem informativo, certamente é mais informativo do que as informações que a própria empresa dá. Na era em que tudo é avaliado, os apps têm ferramentas de avaliação, as empresas e as escolas têm algum tipo de avaliação. É natural que as próprias empresas também sejam avaliadas pelos profissionais”, comenta Pieri. O economista ressalta que o propósito de compartilhar informação não é necessariamente o primeiro ao se postar um vídeo desse.
Para Lima, a tag não significa que todos tiveram vontade de incentivar outros, como Priscylla tentou fazer, ou de denunciar empresas ruins para se trabalhar. “Não é possível afirmar que esse movimento quer, propositadamente, passar essa mensagem. Mas eu posso afirmar que as empresas devem estar atentas porque, sim, eles influenciam comportamentos. Se eu vejo que um colega meu postou algo sobre o desafio, realmente pediu demissão e está recolocado [no mercado de trabalho] e mais feliz, isso significa que eu também posso fazer o mesmo! Ao divulgar a empresa, o gestor ou algo assim, os candidatos no mercado de trabalho optarão por buscar oportunidades na concorrência, e isso pode, sim, impactar, consideravelmente, o nível de atratividade de talentos das empresas envolvidas. As mídias sociais ampliaram exponencialmente a visibilidade das empresas e seus gestores, não há mais como ‘se esconder’, e isso aumentou, de certa forma, o poder de barganha de parte dos profissionais”, avalia a psicóloga.
No entanto, é preciso relembrar que os departamentos de recursos humanos também buscam informações sobre os possíveis contratados em redes sociais. Portanto, um vídeo de demissão no qual se ofende o empregador anterior pode contar contra o candidato. “As pessoas mais jovens são mais arrojadas para as redes sociais, testam mais. O impacto para a carreira depende do negócio em que o trabalhador vai atuar: em negócios criativos, mais disruptivos, o impacto desse tipo de vídeo é pequeno. Mas em uma empresa mais formal, pode pegar mal, como para consultórios médicos ou escritórios de advogados. Não faz muito sentido publicar um vídeo desses se não tiver um plano B, pois os empregadores também acompanham o TikTok. Uma brincadeira pode custar caro. É um histórico que se carrega”, adverte a economista e professora do Insper Juliana Inhasz.
Questão geracional e econômica
Entre os especialistas, não há concordância sobre se o tema pode ter se tornado mais forte por uma relação diferente da geração Z (nascida de 1996 até 2010) com o trabalho. Pieri, por exemplo, acredita que esse pode ser um fator para a decisão na hora de postar os vídeos. “Aquele sonho de entrar numa empresa, permanecer nela e se aposentar é um sonho do passado. Isso tem tanto a ver com a busca de gerações mais jovens de um propósito no trabalho, o que pode levar a um nível de exigência por parte deles maior ao que as gerações anteriores tinham. Tem também o fator de que jovens que trocam de emprego mais rápido tendem a ter aumento de rendimentos e de salários em velocidade maior” afirma o economista.
Já a psicóloga Lima discorda. “Precisamos ter cuidado ao se falar das questões geracionais, muitos estudos são realizados em outros países, portanto, em outras realidades sociais. Considerando as peculiaridades do Brasil, cabe a segmentação de quem precisa trabalhar, independentemente da geração, vai tolerar o que for para levar dinheiro para casa, quer estabilidade e segurança. Agora, se você olhar os jovens que tiveram uma formação acadêmica diferenciada e que atuam em determinados segmentos, como tecnologia e sistema financeiro, eles definitivamente escolhem onde querem trabalhar e por quanto tempo. A relação é completamente diferente, eles têm muito poder de barganha, pois o mercado de trabalho está bem aquecido”, avalia.
Da mesma forma, a questão cultural esbarra tanto nas diferenças entre Brasil e Estados Unidos quanto nas econômicas. O país da América do Norte vive um momento de demissões em massa durante a recuperação da economia, após o tombo inicial causado pela pandemia de Covid-19. No Brasil, o desemprego tem caído de forma mais lenta — a taxa ainda está alta, em 11,6%, de acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), referente ao mês de novembro de de 2021, divulgada pelo IBGE. “O mercado de trabalho dos Estados Unidos tem muita absorção, é um país onde as pessoas ficam pouco tempo desempregadas. Então, isso pode explicar esse comportamento, pois a pessoa tem probabilidade de conseguir se recolocar em pouco tempo. É um mercado flexível, que tem rotatividade alta”, relata a economista Inhasz.
Vieri concorda. “A grande diferença do mercado de trabalho é o nível de aquecimento dos Estados Unidos e do Brasil. Os americanos já tiveram taxa de desemprego mais baixa que a atual, mas estão com mais vagas do que se encontra aqui. Embora a taxa de desemprego tenha caído no Brasil, caiu pouco, e o nível de desemprego é muito alto, bem acima dos dois dígitos. Então, nesse ambiente com menos oportunidade, o Brasil tem crescido muito pouco. Tudo isso desencoraja os brasileiros a pedirem demissão e correrem risco de não conseguirem outro emprego tão fácil”, avalia.
Por causa disso, Lima avalia que é preciso fazer um recorte de nível educacional sobre quem pode publicar vídeos demonstrando o último dia de trabalho ou mesmo o pedido de demissão, no qual critica o chefe anterior. “Considerando o público envolvido nesse desafio, a reflexão merece mais profundidade. Tem um público jovem de alto poder aquisitivo que vai pedir demissão por qualquer razão que se sinta incomodado. Na outra ponta, há um segmento que não vai pedir demissão porque precisa do dinheiro para viver. Contudo, há os ‘nem nem’, os que nem trabalham nem estudam, e eles vêm crescendo fortemente no nosso país. Se eu tenho uma grande parcela de ‘nem nem’, então é natural que o movimento do desafio seja limitado mesmo”, analisa.
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