Eu me demito: fenômeno da grande resignação chega ao Brasil
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Pedir demissão no meio de uma crise econômica e sanitária parece aquele tipo de luxo reservado a trabalhadores ricos de países desenvolvidos. Todo mês, mais de 4 milhões de americanos passaram a deixar seus empregos voluntariamente, num fenômeno que ganhou nome próprio: Great Resignation (“grande resignação”).
Trata-se de um exército de trabalhadores urbanos, majoritariamente jovens – com menos de 30 anos – e do setor de serviços. Fica mais fácil para quem mora em um país cujo índice de desemprego é virtualmente zero: lá a desocupação está em 3,9%. É o oposto do cenário brasileiro. Aqui, 13 milhões estão em busca de trabalho, e a taxa de desemprego, ainda que em queda, continua acima dos dois dígitos, ao redor de 13%.
E, mesmo assim, o Brasil também vive sua grande resignação. Todos os meses, quase 500 mil trabalhadores jogam seus crachás pela janela e dão fim ao emprego que tinham – sem levar nenhuma vantagem além de sair da empresa, pois essa modalidade de demissão não libera o FGTS. É o dobro do registrado nos anos anteriores à pandemia, de acordo com o estudo encomendado pela Você S/A ao estúdio de inteligência de dados Lagom Data.
A Lagom analisou quase 188 milhões de registros de movimentações trabalhistas do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), entre 2016 e novembro de 2021, dado mais recente disponível na conclusão desta reportagem.
E os números mostram que Brasil e EUA viveram um movimento semelhante: antes de 2020, havia uma certa estabilidade no número de pedidos de demissão voluntária. Logo após o início da pandemia, trabalhadores se seguraram nos seus empregos – até porque as empresas estavam demitindo a rodo à medida que fechavam as portas de forma temporária ou definitiva. Mas tão logo a fase aguda da crise passou, trabalhadores decidiram assumir as rédeas de suas carreiras e deram adeus a seus chefes.
É tanta gente pedindo as contas no Brasil que, em um ano, os pedidos de demissão representam uma rotatividade de 15% nas vagas com carteira. O número total é ainda maior, já que o estudo foi feito com base exclusivamente nos desligamentos a pedido. Existem ainda as demissões por comum acordo, autorizadas pela reforma trabalhista de 2017 – e essas não ficam contabilizadas como voluntárias.
Os dados oficiais são apenas numéricos. Não registram os motivos que levam tanta gente a pedir demissão. Para entender melhor o que se passa, ouvimos especialistas – e também trabalhadores que decidiram pedir as contas em meio à nossa “grande resignação”.
Prioridades
Dá para resumir em três pontos o que leva uma pessoa a se demitir: ganhar um salário melhor, mudar-se para um ambiente de trabalho mais saudável e dar um upgrade na qualidade de vida. Os três pontos não são excludentes. Mas essas motivações são mais frequentes quando existem mais vagas disponíveis do que gente para trabalhar. E Ana Cristina Limongi-França, professora de economia da FEA/USP e da FIA, detectou foi o seguinte: o advento do home office deu uma força para quem sonha com mais dinheiro ou mais tempo livre, mesmo numa realidade de desemprego em alta.
“Houve mais oportunidade de trabalho [remoto] especialmente no setor de serviços e atendimento”, diz Ana Cristina. Ela é coautora de um estudo sobre o impacto da qualidade de vida no trabalho, e como esse fator leva a pedidos de demissão.
A professora vê dois cenários possíveis para explicar a decisão de abandonar o emprego. Um é o mais natural: o de profissionais que, geralmente mais qualificados, abandonam o trabalho atual por ter algo melhor em vista. Outro é quando as condições de trabalho pioram de tal maneira que as pessoas se sentem forçadas a sair.
Em certos casos, a própria pandemia causou essa deterioração. Foi o que aconteceu no caso de Elisane Ribeiro de Abreu Santos, de Aparecida de Goiânia. Aos 45 anos, ela decidiu abandonar a loja de eletrônicos onde trabalhava como vendedora. Em volume, essa é a ocupação que mais teve demissões voluntárias no Brasil: entre julho e novembro, quase 148 mil contratos de trabalho foram desfeitos a pedido dos funcionários. O setor é o segundo maior empregador do país, atrás apenas de serviços.
O último emprego de Elisane durou quase quatro anos, até ela pedir as contas, em junho do ano passado, em um acordo com a empresa. Com mais de um ano de adaptações ao trabalho durante a pandemia, não se sentia confortável em trabalhar em um ambiente fechado com ar-condicionado. “Eu gostava do meu trabalho, gostava dos amigos, mas a pandemia foi o que mais me motivou a sair. Achei interessante trabalhar de casa”, conta.
Ela decidiu, então, empreender e abrir seu próprio comércio, de acessórios femininos. Às vezes trabalha mais do que no emprego anterior – impondo para si metas mais ambiciosas do que as que lhe eram dadas. Quando precisa, tira um dia para dedicar à família.
Elisane não é uma exceção. A Lagom Data levantou o número de CNPJs de empresas individuais abertos no país, a partir dos microdados da Receita Federal. Eles continuaram aumentando mensalmente durante a pandemia.
Proporcionalmente, a atividade com maior volume de saídas voluntárias foi o telemarketing, em que o número de pedidos de demissão representa 18,7% do total de vagas formais ao final de 2020. E a ocupação continua com demanda por profissionais: exceto pelos dois primeiros meses de isolamento social, o saldo de empregos foi positivo no telemarketing em todos os meses, o que também indica uma alta rotatividade. Na pandemia, o teleatendimento cresceu em importância.
Foco no trabalho
Dados do Caged mostram que homens foram mais ativos nos pedidos de demissão do que mulheres – eles representam quase 60% dos trabalhadores com carteira assinada do país. No caso das mulheres, o mais provável é que o pedido de demissão para cuidar dos filhos não tenha sido escolha, mas por necessidade. “Muitas podem pedir demissão por não terem com quem deixar os filhos. [Depois que o comércio reabriu] as escolas continuaram fechadas por meses”, lembra Ana Paula Salviatti, pesquisadora de desenvolvimento econômico na Unicamp.
O programador Rogério Lira é outro que teve problemas dentro da empresa por conta da pandemia.
Ele, que tem 37 anos, tinha feito há pouco tempo uma transição: trocou a área de infraestrutura em tecnologia pela de desenvolvimento de software. Primeiro, trabalhou numa empresa de São José dos Campos, que fechou as portas com a pandemia. Seu emprego seguinte foi numa startup em São Paulo, que produz um aplicativo de cuidados pessoais.
Com o trabalho sempre presencial, por decisão da empresa, e a mãe passando por um tratamento de câncer, ficou preocupado com a saúde da família ao ver que quase ninguém usava máscara na companhia onde estava.
“Fui levantar essa questão com o dono da empresa, e ele me chamou de comunista de m…” Decidido a encontrar outro emprego que respeitasse as regras sanitárias, ou em que pudesse trabalhar de casa, Rogério foi ao RH para pedir as contas. Os funcionários do departamento também não usavam máscara.
“[A área de TI] é um mercado em crescimento. Mudei bastante [de emprego] neste último ano, por opção, buscando propostas melhores, e o máximo de tempo que fiquei desempregado desde que entrei nesse meio foi um mês”, diz Rogério.
A impossibilidade de fazer home office mesmo na fase mais aguda da pandemia foi a gota d’água também para Mariana Santini, 23. Ela faz parte do grupo que, proporcionalmente, mais deixou o trabalho: jovens de até 29 anos.
Ana Paula Salviatti, da Unicamp, lembra que esse grupo de profissionais já ocupa vagas mais precárias, o que estimula a rotatividade. Era justamente o caso de Mariana. Ela trabalhava como redatora numa agência de publicidade em São Carlos. A carga de trabalho só aumentava. Ela ainda precisava dividir com os colegas as tarefas de manutenção do escritório, pois faltavam os profissionais contratados para isso. Salário e oportunidades de crescimento não estavam no horizonte, e o único jeito de ter um aumentinho foi trocar três letras por duas: CLT por PJ, mas com trabalho presencial e horário fixo.
“No home office eu rendo até mais, porque na minha função pede essa atividade introspectiva, para conseguir me concentrar e escrever. Eu até me atrapalhava no presencial porque era todo mundo na mesma sala de criação falando e discutindo ao mesmo tempo”, diz.
Esgotada, com altos níveis de ansiedade, Mariana acredita que só não chegou à síndrome de burnout porque já fazia acompanhamento psicológico. Então planejou com esmero o momento de cair fora. Como já tinha CNPJ, agora presta serviços como freelancer, sem trabalhar como se tivesse vínculo.
Elisane também só viu vantagens em mudar de ares. “Acho que todo mundo é capaz, e às vezes a gente não precisa ficar num emprego que te deixa infeliz só pela segurança daquele salário”, diz. “Se você ama fazer alguma coisa, se você faz alguma coisa muito bem, vá em frente! Compensa.”
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